sábado, 3 de dezembro de 2005

João Carlos Pensa - Mestre nº 1


"A arte surge a meio caminho do homem e do universo. Nela, ele se reconhece, encontra seus pensamentos e seus sentimentos, ao mesmo tempo que faz seu aquilo que o cerca e que não é ele. A dualidade irredutível de sua dupla experiência externa e interna se encontra, enfim, resolvida." (René Huyghe)


Essa é uma história que parece ter sido inventada… A começar pelo personagem principal, meu primeiro professor de pintura, figura real e surreal.
João Carlos Pensa apareceu no meu caminho quando eu já completava um ano de experiências solitárias no campo da pintura, como artista auto-didata.
Ao amigos Cléo e Leonardo Leitão da Cunha, me presentearam com as aulas desse grande mestre, que na época já era professor do Leonardo.
Como não tinha dinheiro para pagar as aulas, aceitei com alegria o importante presente, sentindo muita expectativa e vertigem.
Reuni as fotografias dos trabalhos que havia realizado até então, coloquei-as debaixo do braço e me dirigi à casa do mestre, cheia de apreensão e pressa.
Seu ateliê ficava dentro de sua casa repleta de tapetes, objetos de porcelana, troféus de salões e principalmente pinturas de João Carlos: coloridas obras surrealistas, elaboradas com perfeição realista, cheias de detalhes e informações que conseguiam retratar até mesmo óperas inteiras numa única tela.
Ele estava sentado em sua poltrona, acendendo um cigarro no outro enquanto me olhava com reservas. Simpático, porém altivo, o senhor já deveria ter quase setenta anos de sotaque argentino e muita espirituosidade.
Eu sentei bem na pontinha do sofá, bolsa no colo e costas retas, sem saber como relaxar as mãos.
João Carlos Pensa começou a implicar com a mocinha que trabalhava em sua casa e servia desajeitadamente os cafezinhos. Iniciamos a conversa. Seu bom humor agora era claro como a luz que tentava entrar pelas grossas cortinas de sua sala.
Eu me percebia bastante insegura e cheia de nove horas. Depois de muito conversar sobre os caminhos que me levaram a té ele, examinou minhas fotos em silêncio.
Suas apreciações me deram uma violenta rasteira: "Para ser artista precisa ser assim, assim, assado. Você, minha querida, não é nada disso". Juro que não lembro das palavras que usou para me agredir. Bloqueei. Lembro apenas de sair de sua casa com as pernas meio bambas, atordoada com as críticas. Perdida no rumo de casa, não conseguia chorar.
Quando voltei ao seu ateliê na semana seguinte para a próxima aula, ele perguntou com um sorriso: "Teve coragem de voltar, mesmo depois de tudo o que eu disse?". Hoje me pergunto se tudo teria sido apenas um teste, uma brincadeira.
Bom, só sei que começamos a trabalhar. Sempre muito obediente e dedicada, seguia suas ordens sem medo de estragar os trabalhos que pensava já estarem terminados. Ele brincava muito comigo, me chamando de metida por me ver pintar com a mão no bolso. Acendia um cigarro no outro e sorria.
Em pouco tempo entrei mitologicamente para a sua família. Ele resolveu espalhar para os quatros cantos que eu era sua sobrinha e começou a me dar aulas de graça. Eu que detestava mentiras, não conseguia afirmar que aquele querido sexagenário de humor ácido era irmão de minha mãe… Fui tratada com carinho por todos a quem ele me apresentou e por seu intermédio comecei a expor nos primeiros salões. Continuava pintando sob sua orientação, tentando dar o menor trabalho possível, visto que ele não me cobrava nada.
O carinho dele por mim era verdadeiro. Sua esposa Vera ficou amiga de minha mãe e sempre nos encontrávamos em datas comemorativas. Realmente viramos uma família, pois a amizade teve raízes fortes.
O tempo passou e minha pintura pedia para tomar novos rumos. Parei com as aulas, mas nunca deixei de conviver com ele. Nossa amizade se fortalecia a cada encontro, um mais feliz que o outro.
Tive outros professores, tracei outros caminhos e ele continuou firme pelo seu.
Os cigarros repetidos começaram a fazer efeito. Certo dia fui informada de que ele tivera um problema sério de coração, mas que voltara para casa.
Passado o momento crítico, ele e sua mulher se separaram. Ele saiu de casa e procurou um novo ateliê, simples e pequeno para a sua grande arte. Fui visitá-lo com minha mãe, no espaço que ficava em cima de uma loja de aquários e peixes, na rua Caconde. João Carlos parecia cheio de planos nas duas salas cheias de tintas, telas e cinzeiros entupidos de bitucas.
Mais algum tempo se passou e João Carlos Pensa foi parar no quarto de empregada da casa de seu filho. Nunca entendi o que foi que aconteceu em sua vida para que ocorresse essa reviravolta toda.
Combinamos que eu iria visitá-lo. Pouco antes de eu sair de casa Pensa me telefonou pedindo cigarros. Parecia desesperado. Provavelmente estava proibido de fumar pela família e pelo médico. Fiquei sem saber o que fazer. Eu sabia que ele estava muito mal de saúde e que não deveria fumar. Ao mesmo tempo, sabia que a síndrome de abstinência forçada pela proibição iria prejudicá-lo muito mais. Lembrei das palavras sábias do meu pai, médico geriatra, que dizia: "Se você não pode dar uma vida digna a alguém, pode ao menos dar uma morte digna".
Comprei os cigarros e fui ao seu encontro. Sabia que esta poderia ser a última vez que nos encontraríamos nesta existência e essa aflição fez com que eu me perdesse várias vezes no caminho. Levei ainda um bolo, que ele não chegou a comer. Entrei pela lavanderia, disposta a ficar a tarde inteira com ele, até o anoitecer se fosse preciso.
Conversamos um pouco, ele estava muito abatido e triste, os ombros caídos. Disse que iria embora logo. Eu nada respondi. Ficamos um bom tempo em silêncio… Lembramos de seus tempos de glória e constatamos que ali não era o lugar dele.
Ele acendeu um cigarro no outro e pediu para que eu fosse embora, que ele estava muito cansado e pretendia dormir. Eu não queria ir, mas atendi ao seu pedido.
Ele me levou até a porta do elevador e nos despedimos com carinho, combinando de nos encontrar novamente naquela mesma semana. Uma hora depois ele faleceu.
Fui a última pessoa a estar com ele, num momento de comunhão e amor. Minhas crenças me impedem de lamentar seu destino. Acredito que suas experiências de glória e desamparo só o tornaram ainda mais especial. Sua grandeza jamais poderia ser abafada, houvesse o que houvesse.
Essa passagem das nossas vidas é algo que sinto como sendo muito particular, muito meu e dele, mas ao mesmo tempo sinto que deve ser contada, compartilhada pela sua beleza e dureza. No lindo ateliê em que ele se encontra agora não existe vaidade nem orgulho. Apenas a certeza de se ter vivido da melhor maneira possível.
João Carlos Pensa nasceu em Cornélio Procópio. Foi morar na Argentina em sua infância, onde adquiriu um sotaque que nunca o abandonou e onde estudou com Gramajo Gutierrez. Estudou Arte na França, mais precisamente em Sorborne e teve aulas com os artistas Gutuso e Mariete Lydis, na Itália.
Restaurou os museus do Vaticano e os afrescos que conduzem à Capela Sistina.
Arquiteto e pianista, trabalhou no teatro Scala como cenógrafo e figurinista. No teatro Còlon em Buenos Aires trabalhou para o Balé cubano de Alícia Alonso e o Balé do Marquês de Cuevas.
Seu nome não é muito conhecido pelo mercado de arte paulista apesar de possuir diversos prêmios como o Grande Troféu Giuliano Ottaviani, a Paleta de Ouro Van Gogh, o Grande Troféu do Rotary Club de São Paulo e ter representado o Brasil na Bienal Internacional do México em 1998.
Sentirei a falta de sua personalidade única por toda a minha vida. Reconhecerei para sempre a importância de sua presença nas minhas obras e na minha história.
Precisava deixar isso tudo registrado. Não encontrei quase nada sobre ele na internet.